Fonte: Hypeness
Era um domingo à tarde em que caminhava pela Rua Barão de Itapetininga, centro de São Paulo. A loja de uma conhecidíssima rede de fast food acabara de encerrar o expediente, deixando em frente às portas fechadas uma montanha de sacos com os resíduos do dia. Não deu cinco minutos para dois moradores de rua tomarem conta do pedaço.
Miseravelmente felizes com a atividade do momento, eles abriam embalagens e montavam suas versões personalizadas de famosos sanduíches – aqueles que a freguesia costuma chamar pelo número. Saboreavam, sorriam, confraternizavam. As sobras do banquete de sobras eram deixadas de lado e prontamente bicadas por uma gangue de pombas que permanecia ali de sentinela.
Pensei em registrar a cena com uma foto. Me contive por julgar não ter um propósito justificável. Qual seria? Ostentar o smartphone? Ganhar likes compartilhando uma imagem degradante? Já tinha até esquecido do episódio, mas lembrei dele no exato momento em que recebi essa pauta aqui e parei para refletir sobre como abordar o dumpster diving.
Em uma livre tradução ao pé da letra, o termo significa “mergulho na lixeira”. Trata-se de um estilo de vida sustentado pelo ato de catar itens do lixo. Não para encaminhar a centros de reciclagem como fazem os carroceiros brasileiros, que são os grandes responsáveis pelo reaproveitamento de materiais descartados nas nossas cidades. O objetivo do dumpster diving é o consumo próprio. Em bom português, é viver da xepa.
Assim como no caso dos cidadãos que avistei naquele domingo, em origem a prática estava relacionada exclusivamente a questões econômicas. E muitas vezes ainda está. Em São Paulo, só tapando os olhos ou se abstendo do espaço público em condomínios e shoppings para não ver gente dormindo na rua e revirando lixeiras. Entretanto, o comportamento recebeu nome e sobrenome de subcultura em países como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra ao conquistar adeptos que não necessariamente vivem na indigência.
O dumpster diving é praticado em países mais desenvolvidos que o nosso por pessoas que até podem estar passando por dificuldades financeiras, mas que somam a elas uma motivação ideológica. O objetivo é criar um contraponto à overdose de consumo e à cultura do desperdício tão disseminadas na sociedade atual. Foi essa a maneira que alguns encontraram para sobreviver gastando menos e reduzindo pegadas ecológicas no planeta.
Cada busca por mantimentos pode ser um evento. Muitos se agregam para ir às ruas, com encontros organizados pela internet em fóruns e redes sociais. O Facebook apresenta uma porção de grupos onde os participantes fazem contato e trocam informações sobre suas descobertas.
Algumas dicas para iniciantes encontradas na web seguem o básico do bom senso. Usar luvas, verificar se não há ratos dentro da lixeira e higienizar os alimentos encontrados, por exemplo. Outras são mais específicas, como evitar a coleta de melões. Eles podem absorver líquidos que apodrecem a fruta por dentro sem que isso fique visível na casca.
Para conseguir produtos alimentícios de qualidade, uma tática usada é circular durante o dia por corredores de supermercados observando datas de validade. Quando estiver próxima do vencimento, é bem possível que o produto vá para a lixeira naquela mesma noite. Basta retornar mais tarde e encher o carrinho, mochila ou porta-malas do carro.
Não há unanimidade sobre o enquadramento da atividade na lei. Varia de país para país e de caso para caso. De maneira geral, o descarte de materiais é entendido como abandono de propriedade. Aquela história do “achado não é roubado” que aprendemos na infância. No Brasil, o ditado é legalmente válido desde que esse achado não tenha sido perdido.
Mas existe uma polêmica jurídica em torno das questões de privacidade contidas nos sacos de lixo. Por exemplo, você considera aquilo que intencionalmente joga fora como ainda sendo de sua posse? Se tem valor, por que foi rejeitado? Até onde vão os limites dessa propriedade?
Alguém que não cuida da forma como se livra de itens pessoais poderia temer a hipótese de um catador mal intencionado utilizar os dados de um boleto encontrado na sua lixeira para estelionato. Mas isso seria a exceção da exceção à regra e configuraria um crime comum. No dumpster diving, os alvos prioritários são estabelecimentos comerciais e não se trata de furtar algo que está na prateleira. Os caras só querem consumir um iogurte, pão ou carne que não mais será colocado à venda. Produtos cujo provável destino será um aterro sanitário. E a polícia acaba tolerando, desde que não haja denúncias ou flagrantes de invasão de propriedade. O problema é que muitos cercam suas lixeiras para impedir que sejam reviradas. E muitos pulam a cerca.
Em 2013, três homens foram presos em Londres por estarem se apropriando de tomates, cogumelos e queijos que tinham sido descartados nas dependências de um supermercado. A denúncia fora anônima, mas o órgão de lá equivalente ao Ministério Público daqui levou o caso adiante por entender que havia interesse público no processo. E isso gerou uma chuva de protestos contra a marca nas redes sociais. Após muita pressão popular e um pouco também por parte da empresa, a acusação acabou sendo retirada. Para evitar maiores danos à imagem institucional, o CEO da rede varejista foi inclusive ao The Guardian dar a sua versão da história.
O denominador comum nas buscas são alimentos ainda em condições de consumo. Mas comer de graça é apenas uma das portas de entrada nesse mundo. A coleta pode incluir roupas, móveis e objetos para o lar. Aparatos tecnológicos substituídos pela mais nova versão de si mesmos também entram na mira. Se for possível reusar, é passível de catar. Há quem consiga reduzir substancialmente suas transferências de moeda com a prática diária. E há também quem consiga faturar com ela.
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Voltemos ao Brasil. Para nós, o dumpster diving parece coisa de gringo. Ou uma realidade exclusiva de quem vive a extrema pobreza. O senso comum por essas bandas afirma que só se faz isso por necessidade, não por opção. Em tese, atacando nossos problemas de desigualdade social e econômica, ninguém mergulharia na lixeira como a dupla do Centro que juntava hambúrgueres, alface, queijo e molho especial. Em tese.
Se existe gente aproveitando o que encontra no lixo, então existe quem jogue fora algo aproveitável. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, cada brasileiro produz mais de 1 kg de resíduos por dia. Poderíamos falar sobre obsolescência programada ou sobre como a necessidade de ter o último gadget do momento anda de mãos dadas com o lixo eletrônico, mas fiquemos no item que é mais sensível a qualquer um: comida.
O Instituto Akatu afirma que 60% do total de resíduos produzidos no Brasil são materiais orgânicos. E aponta uma série de dicas para aproveitar melhor os alimentos em casa. Se todos seguíssemos, já seria um grande passo para reduzir danos. Mas nossas residências são apenas a parada final de um modelo industrial que trata perdas como peças da engrenagem.
De acordo com a ONG Banco de Alimentos, o desperdício está presente em toda a cadeia produtiva do ramo alimentício, sendo a maior parte durante o manuseio, transporte e comercialização. Alguém poderia perguntar: por que os responsáveis em cada etapa não doam o que não conseguem aproveitar? As empresas respondem amparadas no risco de serem penalizadas caso alguém se intoxique com uma doação. Talvez então a Câmara dos Deputados ou o Senado pudesse elaborar uma lei que desenrolasse isso? Bem, projeto tramitando até existe. Se é eficaz ou não, fato é que não tem sido colocado em pauta nas discussões atuais do Poder Legislativo.
Devemos cobrar parlamentares, claro. Mas sempre existem caminhos alternativos. Temos visto uma porção de ações transformadoras promovidas voluntariamente por pessoas comuns. São projetos independentes que, quando analisados em conjunto, formam um cenário inovador, onde o consumo irracional e o desperdício irresponsável dão lugar à noção de interdependência, compartilhamento e reaproveitamento.